Centenas de pessoas compareceram ao Teatro da Reitoria para prestigiar o evento “60 anos do golpe – memórias, lutas e resistências” na última segunda-feira (28). Com uma programação extensa, a cerimônia fez parte de uma série anual de ações realizadas por diferentes setores da UFPR para marcar os sessenta anos do início da ditadura civil-militar no Brasil.
O evento foi aberto para toda a comunidade e contou com ato público de desagravo ao professor Vieira Netto, exibição do filme “Entrelinhas” e conversas com figuras que vivenciaram na pele a repressão daqueles dias – a famosa “geração 1968” da UFPR, grupo de estudantes que protagonizou diversos episódios de resistência contra o regime, esteve em peso na plateia. Os participantes ainda discutiram sobre a importância do registro da memória do golpe para os dias de hoje (leia mais abaixo).
Uma comissão formada pelos setores de Ciências Jurídicas, Ciências Humanas e Artes Comunicação e Design foi responsável pelas ações realizadas ao longo do último anos para relembrar o golpe militar. Em discurso na solenidade, o reitor da UFPR, Ricardo Marcelo Fonseca, destacou que no período da ditadura a universidade esteve marcada não só por histórias de resistência, mas também de colaboração com o regime autoritário, e por isso a importância do evento.
“É preciso resgatar esta memória, sem deixar páginas grudadas neste livro. Esta é uma tarefa importante do resgate da memória, e creio que esse conjunto de atividades que os setores de Ciências Jurídicas, Ciências Humanas e de Artes, Comunicação e Design realizaram foi realizado bem”, afirmou.
Ato de desagravo a Vieira Netto emocionou presentes
Entre as ações de colaboração da UFPR com o regime autoritário relembradas pelo reitor Ricardo Marcelo, esteve a cassação da Cátedra de Direito Civil do professor José Rodrigues Vieira Netto. Membro do Partido Comunista Brasileiro e figura única entre a conservadora Faculdade de Direito da UFPR, Vieira Netto foi alvo de diversas repressões realizadas pela universidade por sua postura contra a ditadura.
Para relembrar a história do professor no período do golpe, discursou no evento Antonio Acir Breda, ex-diretor do Setor de Ciências Jurídicas da UFPR e aluno de Vieira Netto, e que se referiu ao mestre como o “príncipe da advocacia paranaense”. Breda relembrou a perseguição sofrida pelo seu professor na universidade, que chegou a ter uma banca formada para impedir a contratação de Vieira Netto por concurso público.
Mas uma das principais punições a Vieira Netto foi a proibição de ser paraninfo da turma de Antonio Breda. A universidade chegou a ameaçar suspender a formatura dos estudantes caso eles não retirassem o nome do professor do convite e punir os oradores.
Os alunos realizaram diversos protestos, mas, segundo Breda, o próprio Vieira Netto convenceu os estudantes a ceder e escolher outro paraninfo. E o professor chegou a fazer um discurso, que nunca chegou a ser lido na sessão solene.
“Esse discurso sobre as Quatro Liberdades o professor Vieira Netto imprimiu, e eu tive a incumbência, a seu pedido, de distribuir no dia do baile, que se realizou no antigo Clube Curitibano. Eu e meus irmãos menores chegamos no baile com um pacote e eu fiz a distribuição”, conta Antonio Breda.
- O discurso, que até recentemente era considerado uma “lenda” da universidade, foi enviado à comissão organizadora do evento pelo advogado Juliano Breda e distribuído aos presentes em uma impressão fac-símile. Confira o texto completo aqui.
Visivelmente emocionado ao relembrar a história de seu professor e mestre, Breda foi aplaudido pelo público presente.
“Eu me sinto emocionado em poder enaltecer, mais uma vez, aquele que foi o maior advogado que tivemos. Por isso a ordem, até hoje, venera essa figura maravilhosa”.
O ato de desagravo ao professor Vieira Netto também contou com a presença da presidente da OAB-Paraná, Marilena Indira Winter, que ressaltou a importância de Vieira Netto para a advocacia.
“Este ato público de reconhecimento, verdadeiro desagravo a Vieira Netto, é mais do que justa a homenagem da Universidade Federal do Paraná a um homem que se destacou não apenas como jurista, mas sobretudo como exemplo de integridade. Não por acaso, a nossa maior honraria, concedida pela OAB-PR, leva o seu nome. José Rodrigues Vieira Netto é um verdadeiro referencial para todos os profissionais do Direito que almejam uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária. A OAB do Paraná tem muito orgulho em estar associada aqui, a essa homenagem e a esse resgate histórico”, discursou.
Na solenidade, o reitor Ricardo Marcelo aproveitou a ocasião para contar uma novidade: no próximo mês, o antigo prédio do Tribunal de Contas da União, na rua Dr. Faivre, vai abrigar a Pró-Reitoria de Administração da UFPR. A edificação passará a se chamar “prédio José Rodrigues Vieira Netto”, em homenagem a esse histórico personagem da universidade.
“A nossa universidade, em algumas ocasiões e de modo vergonhoso para todos nós, operacionalizou ações de colaboração com o regime autoritário. A história do professor Vieira Netto demonstra muito bem isso. A UFPR coloca esse ato público de desagravo junto com uma série de ações, que ao longo da última década já foram feitas nesse ‘acerto de contas’ com o seu passado na época da repressão”, afirmou o reitor.
Exibição do filme “Entrelinhas” e discussão sobre a importância da memória
Após os atos solenes, o evento “60 anos do golpe – memórias, lutas e resistências” exibiu ao público o filme nacional “Entrelinhas” (2023). A produção narra a história de Ana Beatriz Fortes, jovem de 18 anos presa pelo regime militar sob a acusação de pertencer ao movimento estudantil subversivo e a um grupo de guerrilha armada que luta contra o regime, a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares / VAR-Palmares.
Após resistir a dez dias de torturas sem que os militares comprovassem o envolvimento dela com as acusações, Beatriz é devolvida à família por um oficial do Exército Brasileiro.
O filme, do diretor Guto Pasko, é uma ficção baseada na história real de Ana Beatriz. Após a exibição da obra, o evento teve uma mesa-redonda que contou com a presença do cineasta e da própria Ana Beatriz Fortes. Participaram ainda desta mesa a professora Judite Maria Barboza Trindade, estudante da “geração 68” da UFPR que também foi presa pelo regime militar, e a professora Rosane Kaminski, do Departamento de História, pesquisadora das relações entre cinema e história. Os quatro convidados falaram sobre a importância e dever de memória, em conversa mediada pelo professor Carlos Alberto Martins da Rocha, superintendente de comunicação da UFPR.
Durante o debate, Guto Pasko contou que soube da história de Ana Beatriz após ser contada por Vitorio Sorotiuk, outra grande figura entre os estudantes da “geração 68”. O momento vivido atualmente pela sociedade brasileira foi um dos motores para o desenvolvimento da produção.
“O que me motivou a fazer esse filme, a partir da história real da Ana Beatriz em 1970, é falar do Brasil de hoje. Dessa situação que a gente passa, onde parte significativa da sociedade deseja que a ditadura retorne. Nós, como cineastas, temos uma responsabilidade com nosso trabalho de refletir sobre a sociedade que vivemos”, disse Guto.
“É uma função importantíssima de um filme como esse e tantos outros feitos principalmente a partir de 2016, é essa construção de memórias”, complementou a professora Rosane Kaminski. “É essa participação do filme em uma discussão sempre candente, e hoje em dia muito tensa, sobre o passado brasileiro, e trazer isso a partir de memórias, nesse caso de uma memória pessoal”.
Ana Beatriz afirmou na discussão que até hoje trabalha para superar os horrores vividos durante sua prisão, mas vê a relevância dessas histórias vividas no regime militar serem trazidas para o público, especialmente em um período que parte da população idealiza aquela época.
“É muito impressionante e revoltante. O que eu acho que podemos fazer é o que o Guto fez, o que nós estamos fazendo aqui. Sempre relembrando e reforçando para ver se as pessoas tomem alguma consciência de tudo. Apesar de todas as dificuldades, a arte é uma forma bem interessante de contar a história”, afirmou.
O resgate dessas memórias de repressão e resistência também foram ressaltados pela professora Judite, que tem uma trajetória de militância contra a ditadura no Paraná e fez uma reflexão sobre as histórias daquele período que as pessoas trazem com elas.
“Ana Beatriz carrega essa história de resistência maravilhosa. De dor, de sofrimento, mas de resistência. O cidadão é fruto da sua história. Eu sou fruto da minha história, e quando passei a poder contá-la, achei muito bom”, afirmou. “A história a gente carrega, não importa que história você tem. Ela é tua, e na medida do possível tem que ser de todos. E aí a importância da memória”.
O debate completo da mesa-redonda com a participação dos convidados pode ser visto no YouTube, e também os atos solenes do evento podem ser conferidos aqui.
Ações na universidade resgataram memórias dos 60 anos do golpe militar
As iniciativas realizadas na UFPR para marcar este período da história do país foram realizadas por diversas mãos, entre docentes, estudantes e técnicos administrativos. O evento de segunda-feira (28) no Teatro da Reitoria foi um encerramento das ações, como destacou a professora Tânia Bloomfield, do Departamento de Artes.
“Hoje, nesta noite emblemática, a UFPR, pública e gratuita, apresenta-se a vocês por meio da articulação entre ensino, extensão e pesquisa, e em defesa da democracia. Este evento finaliza o conjunto de ações que essa comissão organizou a propósito da efeméride dos 60 anos do golpe civil-militar no Brasil”, disse.
O professor João Frederico Rickli, diretor do setor de Ciências Humanas, ressaltou que a UFPR cumpriu seu papel como universidade pública ao longo das ações do último ano.
“A comunidade acadêmica e universitária brasileira se dedicou bastante a fazer uma reflexão sobre os 60 anos do golpe, mas a gente aqui da UFPR teve essa força de fazer um evento com cara de ‘evento percurso’, como disse a professora Stephanie do Setor de Artes, Comunicação e Design”, afirmou. “A gente tem um dever de memória. E nesse dever, a gente como universidade pública cumpriu. Tenho a alegria de dizer que não nos furtamos a esse dever, ao contrário de como certos setores do estado brasileiro infelizmente fizeram”.
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